
A Maçonaria, enquanto instituição iniciática, é rica em símbolos que dialogam com os arquétipos cósmicos, com as religiões solares da Antiguidade e com os ciclos naturais que regem a existência. Entre os muitos símbolos e personagens que compõem seu vasto universo simbólico, poucos são tão marcantes quanto os dois São Joões: São João Batista e São João Evangelista. Contudo, há ainda um terceiro São João, muitas vezes esquecido: São João Esmoler, de Jerusalém.
A escolha desses santos como patronos da Maçonaria está longe de ser uma casualidade histórica. Trata-se de um entrelaçamento de tradições solares, ritos agrícolas, doutrinas iniciáticas e espiritualidade cristã esotérica. Neste artigo, vamos explorar detalhadamente quem são esses personagens, por que são considerados padroeiros da Maçonaria, quais os seus significados simbólicos, como aparecem nos rituais e tradições maçônicas e qual é o papel deles nas celebrações anuais da Ordem.
A Luz dos Solstícios: O Cenário Cósmico da Tradição Maçônica
Desde os tempos mais antigos, os povos observaram com reverência os dois momentos cruciais do ciclo solar: o solstício de verão e o solstício de inverno. Esses dois marcos simbolizam, respectivamente, o auge da luz e o renascimento da esperança após o período de maior escuridão. A escolha de São João como padroeiro da Maçonaria não foi um acontecimento aleatório. Ela está profundamente ligada à história das corporações de ofício, especialmente as de pedreiros e construtores medievais, que buscavam inspiração em figuras exemplares para nortear sua conduta ética e espiritual.
Historicamente, as antigas guildas de pedreiros celebravam dois momentos do ano como sendo de grande importância:
No hemisfério norte, o solstício de verão, em 24 de junho, coincide com a festa de São João Batista. Já o solstício de inverno, em 27 de dezembro, celebra São João Evangelista.
Essa ligação entre os ciclos solares e os dois Santos João não é apenas uma coincidência de calendário. Ela representa a eterna alternância entre a luz e a escuridão, entre o agir ético e o contemplar filosófico, entre a ação purificadora e a reflexão transformadora.
São João Batista: O Precursor da Verdade e da Moral

Figura central no Novo Testamento, São João Batista foi aquele que preparou o caminho para o Cristo. Sua mensagem era de purificação, arrependimento e preparação espiritual.
Na Maçonaria, o Batista representa o momento de transição entre o profano e o iniciado. Simboliza o chamado à transformação moral, a passagem pela água da purificação e o primeiro passo rumo à iluminação.
Ele também representa a luta contra os vícios e o apego aos valores éticos. Sua figura é lembrada como a de um homem de caráter incorruptível, que não temeu denunciar a hipocrisia e a injustiça, mesmo diante das ameaças à sua própria vida. Sua celebração no solstício de verão indica o ápice da luz exterior. É o tempo de ação, de reforma interior e de compromisso ético com a sociedade.
São João Batista e o Solstício de Verão no Hemisfério Norte
A festa de São João Batista acontece em 24 de junho, no solstício de verão no hemisfério norte. Esse é o dia mais longo do ano, um período em que a luz atinge seu apogeu antes de começar a declinar. Esse simbolismo é profundamente significativo na Maçonaria, pois representa o auge da iluminação espiritual, o momento de máxima clareza e discernimento.
É nesse período que muitas Lojas Maçônicas realizam cerimônias especiais, conhecidas como “Sessões de São João”, nas quais se celebram os ideais de retidão moral e compromisso com a verdade.
São João Evangelista: O Mestre da Sabedoria e da Contemplação

Enquanto São João Batista representa a ação ética, a denúncia do erro e a reforma interior, São João Evangelista simboliza o conhecimento, o amor universal e a contemplação. Autor do quarto evangelho, das epístolas e do Apocalipse, é conhecido como o “Discípulo Amado”, aquele que esteve mais próximo de Jesus durante sua vida terrena.
Enquanto o Batista é a voz que clama no deserto, o Evangelista é o contemplativo que mergulha nas profundezas do mistério. João, o Evangelista, representa a sabedoria oculta, o mistério da palavra e o conhecimento profundo da Verdade.
São João Evangelista e o Solstício de Inverno no Hemisfério Norte
A festa de São João Evangelista ocorre em 27 de dezembro, logo após o solstício de inverno. Esse é o dia mais curto do ano, simbolizando o início da retomada da luz, o renascimento da esperança e a promessa de renovação.
Na Maçonaria, esse momento representa a busca contínua pelo conhecimento, a reflexão profunda e o fortalecimento da espiritualidade. É um período de introspecção e planejamento para o novo ciclo que se inicia.
Sabedoria e Amor Fraterno
São João Evangelista é o patrono do amor fraterno, da caridade e da união entre os irmãos. Sua vida e seus escritos ensinam que o conhecimento só tem valor quando é acompanhado de amor e compaixão.
Para os maçons, essa lição é essencial: o saber não pode ser usado para fins egoístas, mas deve servir ao bem coletivo e à construção de uma sociedade mais justa e solidária.
São João Esmoler: O Guardião da Caridade e da Misericórdia

Pouco lembrado nas Lojas modernas, São João Esmoler, também chamado de João de Jerusalém, foi um importante bispo de Alexandria. Viveu entre os séculos VI e VII e ficou conhecido por sua inigualável dedicação aos pobres e necessitados.
Eis o verdadeiro padroeiro maçônico!
São João Esmoler foi aclamado padroeiro pela Maçonaria Operativa (findada em 1523), iniciando-se um interregno de quase 200 anos marcado pelo Canteirismo e pelas Old Charges, as “cartas antigas”. Também conhecido como João Misericordioso ou João de Jerusalém (Amathus, Ilha de Chipre, 550 d.C. – Amathus, 616 d.C.), é representado como um bispo esmolando um aleijado ou um pobre. Canonizado no período pré-congregação, São João Esmoler é comemorado no dia 12 de novembro pela Igreja Grega, mas seu dia oficial é 23 de janeiro, segundo o Martirológio Romano:
“23 Januarii […] Alexandriae sancti Joannis Eleemosynarii, ejusdem urbis Episcopi, misericordia in pauperes celeberrimi”
(“23 de janeiro […] São João Esmoler de Alexandria, bispo daquela cidade, por sua compaixão para com os pobres”).
Quando os persas saquearam Jerusalém em 614, João Esmoler enviou grandes quantidades de comida, vinho e dinheiro para auxiliar os cristãos que lá residiam e que desejavam fugir. Além disso, contribuiu para a construção e reconstrução de templos em Jerusalém, Alexandria e Chipre. Após sua morte, em reconhecimento ao seu desprendimento material e amor incondicional, foi canonizado com o nome de São João Esmoleiro. Desde 1632, seus restos mortais repousam na antiga Catedral de Pressburg, atualmente Catedral de São Martinho, em Bratislava, capital da Eslováquia.
Pelos seus predicados de charitas, São João Esmoler de Alexandria e Jerusalém veio a ser aclamado Patrono da Ordem dos Cavaleiros Hospitalários, ou Ordem de São João do Hospital de Jerusalém, praticamente desde 1099, quando a ordem se instalou na cidade. Assim continuou quando passou a chamar-se de Rhodes e, posteriormente, Malta. Terá sido dessa época que os monges-construtores ao serviço da Ordem do Hospital, e também da sua coirmã Ordem do Templo de Jerusalém, igualmente adotaram como padroeiro São João Esmoler, e assim permaneceu, mesmo que, com o tempo, tenha sido confundido com algum dos São Joões Solsticiais, sobretudo o Batista.
As Old Charges indicam que os maçons operativos escolhiam como data de sua reunião anual – encontro das Guildas de Ofícios, no conjunto Guirlandas, estrutura semelhante à portuguesa Casa dos 24 – o dia de São João Batista (24 de junho) ou, opcionalmente, o dia de São João Evangelista (27 de dezembro). Isso era de conhecimento do escocês James Anderson (1679-1739), como registrado no Item XXII dos Regulamentos Gerais das Constituições de Anderson de 1723:
“XXII. Os Irmãos de todas as Lojas de Londres e Westminster e das imediações se reunirão em uma Comunicação Anual e Festa, em algum Lugar apropriado, no Dia de São João Baptista ou então no Dia de São João Evangelista, como a Grande Loja pensa fixar por um novo Regulamento, pois essa reunião ocorreu nos anos passados no Dia de São João Baptista: Provido […]”.
O fato é que, em algumas Old Charges inglesas, aparece o primitivo emblema solsticial, composto por um círculo com um ponto no centro, símbolo do Sol, entre duas linhas paralelas e tangenciais, representando os Trópicos de Câncer e Capricórnio. O Sol não se manifesta fora deles, tal como é inviolável a Consciência Monádica ou Divina no âmago profundo do Homem, estando assim em ligação direta com a observância dos Solstícios assinalados por São João Batista e São João Evangelista, o Ciclo de Manifestação.
Os Dois São Joões, o Simbolismo das Duas Portas e Janus Bifronte

Na maioria das Lojas Maçônicas, tanto São João Batista quanto São João Evangelista são considerados padroeiros simultâneos. Essa dualidade carrega um simbolismo profundo, refletido também na disposição física das Lojas Maçônicas, nos dois pilares chamados de “J” e “B”. Seria JB = João Batista?
A tradição iniciática sempre reconheceu a existência de dois caminhos após a morte, ou, simbolicamente, após cada transformação espiritual: o caminho da libertação e o da repetição cármica.
Essa doutrina está presente na tradição oriental, especialmente no Bhagavad-Gita, onde Krishna descreve os dois destinos da alma:
“Os que desencarnam com o Fogo do Amor Divino ardendo em seus corações, iluminados pela Luz do verdadeiro Conhecimento, esses passam pela Porta dos Deuses e não mais precisam renascer.
Os que, porém, desencarnam nas trevas da ignorância, esses passarão pela Porta dos Homens, renascendo quantas vezes forem necessárias até atingirem o grau necessário de Amor e Sabedoria.”
Na Maçonaria, esse conceito ecoa no próprio processo iniciático: a passagem da Porta dos Homens (o mundo profano) para a Porta dos Deuses (a Iniciação e a Luz). Cada ritual, cada grau, cada ensinamento recebido é uma nova travessia rumo à plenitude espiritual.
Janus Bifronte: O Deus das Portas, Transições e Caminhos

Antes mesmo da era cristã, os construtores e iniciados veneravam Janus, o deus romano das portas, passagens e transições. Janus era representado com duas faces, olhando simultaneamente para o passado e para o futuro, simbolizando o presente como ponto de confluência.
Janus era o guardião dos inícios e dos finais, regendo tanto os portais físicos quanto os espirituais. Por isso, foi natural que, com a cristianização, seus atributos fossem transferidos aos Santos João.
De forma simbólica, Janus tornou-se o arquétipo dos São Joões Solsticiais, com um olhar voltado para o Batista (verão) e outro para o Evangelista (inverno), marcando o ciclo eterno da Luz.
Ritos Solsticiais: A Apologia da Luz na Tradição Maçônica
Inspirados nas celebrações solares das antigas religiões mistéricas, os Ritos Solsticiais representam, na Maçonaria, a eterna alternância entre as trevas e a luz, entre a ignorância e o conhecimento.
Segundo a visão esotérica, o solstício de verão marca o auge da energia, da plenitude e da manifestação. Já o solstício de inverno representa o recolhimento, a gestação espiritual e a semente da renovação.
O Eixo Cósmico

O conceito de Eixo Cósmico, presente em diversas tradições esotéricas, representa o ponto de contato entre o mundo material e o espiritual. Na Maçonaria, esse eixo pode ser simbolicamente identificado nos dois pilares da Loja, no Venerável Mestre sentado no Oriente e no próprio iniciado que, em sua jornada, busca a verticalização de sua alma em direção à Verdade Suprema.
Os ritos solsticiais, portanto, são momentos em que esse eixo é fortalecido. É quando o céu e a terra se alinham e o iniciado tem a oportunidade de renovar seu compromisso com a busca da Luz.
Os Solstícios como Marcos Rituais e Psicológicos
Além da dimensão astronômica e espiritual, os solstícios representam também momentos psicológicos de transição. No solstício de verão, o iniciado é convidado a avaliar seus feitos, suas conquistas, suas ações no mundo exterior. É tempo de colher o que foi plantado.
Já no solstício de inverno, inicia-se o ciclo de semeadura interior. É hora de revisitar as sombras da alma, reconciliar-se com os próprios limites e preparar-se para um novo ciclo de aprendizado.
O trabalho maçônico, nesse contexto, se transforma numa espiral ascendente, onde cada ciclo solsticial representa um degrau rumo ao aperfeiçoamento pessoal.
A Tradição Esotérica e a Maçonaria Contemporânea
Embora a modernidade e a vida urbana tenham, em muitos casos, diluído a percepção direta desses fenômenos naturais, a Maçonaria preserva essa tradição cíclica através de seus ritos, sessões e festas solsticiais.
Celebrar os Santos João é, para o maçom, um reencontro com os ritmos universais que regem a existência. É um reconhecimento de que, assim como o Sol, também a alma humana passa por períodos de escuridão e de luz.
“Assim como o Sol se levanta após a noite mais longa, também o homem pode encontrar sua própria luz depois do mais profundo abismo de trevas.”
Os São Joões Solsticiais, simbolicamente herdeiros de Janus, continuam a cumprir sua missão como guardiões das Portas da Iniciação, abrindo caminhos entre os mundos e guiando os iniciados na jornada da construção de si mesmos.
Conclusão: Luz sobre Luz, Ciclo sobre Ciclo
A escolha de São João como padroeiro da Maçonaria não é apenas uma questão de tradição ou calendário. Trata-se de uma escolha profundamente simbólica e pedagógica. Representa a eterna busca pelo equilíbrio entre ação e contemplação, entre justiça e misericórdia, entre força e ternura. Portanto, celebrar São João na Maçonaria é reconhecer que a Luz está sempre disponível para aqueles que desejam buscá-la, compreender seu significado e trilhar, passo a passo, a eterna senda da Iniciação.
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