
« Sou apenas um falível instrumento do qual Deus quis, por mais indigno que eu seja, se servir para lembrar aos homens o seu primeiro estado de construtores, a fim de lhes fazer ver que eles são, de fato, homens-Deus ».
Com essas palavras, Martinès de Pasqually definiu a missão espiritual que orientou toda a sua vida e doutrina.
Figura chave do esoterismo cristão, fundador da Ordem dos Élus-Cohens e inspiração primeira do Martinismo, Pasqually foi ao mesmo tempo um mestre iniciático, um teúrgo operante e um organizador incansável. Sua trajetória combina elementos históricos sólidos, lacunas biográficas e episódios de intensa atividade ritualística, criando um personagem que continua a fascinar pesquisadores e iniciados.

Origens e Primeiros Anos
Apesar das controvérsias que sempre envolveram sua origem, os documentos mais consistentes indicam que Martinès de Pasqually nasceu em Grenoble por volta de 1710, filho de pai espanhol e mãe francesa. Desde jovem, ingressou na carreira militar, servindo como lugar-tenente no regimento de Edinburgh-Dragons em 1737, participando de campanhas militares na Córsega (1740) e na Itália (1747), a serviço da Espanha.
Sua relação com a maçonaria vem de família: seu pai teria recebido, em 1738, uma patente stuartista transmissível ao filho, o que explica a legitimidade maçônica com a qual Martinès circulava nas lojas do sul da França a partir de 1754.
Nessa época, ele frequentou lojas em Avignon, Marselha e Montpellier, onde fundou o capítulo dos Soberanos Juízes Escoceses. Em 1760, apresentou na Loja Saint-Jean, em Toulouse, um ambicioso plano de “restauração” da Franco-Maçonaria. Sua proposta, considerada radical e fora dos padrões ingleses, foi rejeitada — revelando a ruptura que definiria sua obra: a criação de um sistema iniciático independente da maçonaria tradicional.
A Fundação da Ordem dos Élus-Cohens
Chamando seu sistema de Ordem dos Cavaleiros Maçons Élus-Cohens do Universo, Pasqually estruturou um conjunto de altos graus maçônicos baseados em:
- uma doutrina original, a Reintegração dos Seres;
- práticas teúrgicas operativas com finalidade espiritual e cósmica;
- rituais destinados a restaurar o papel primordial do homem como “agente construtor divino”.
Os Élus-Cohens buscavam reconduzir o ser humano às suas virtudes celestes primitivas por meio de uma teurgia rigorosa, inspirada na tradição angélica renascentista e na cabala cristã — mas aplicada a um fim específico: a reparação da queda e a colaboração ativa com Deus na restauração do universo.
O projeto de Pasqually começou a tomar forma na loja do Regimento de Foix, onde encontrou seus primeiros discípulos, como o tenente-coronel de Grainville e o capitão Champoléon. Mas foi em Bordeaux, a partir de 1762, que o movimento ganhou força e estrutura orgânica.
Bordeaux (1767–1772)
A partir de 1767, a vida de Pasqually em Bordeaux é documentada de maneira abundante por sua correspondência com Jean-Baptiste Willermoz. Esse período revela um mestre incansável, dedicado simultaneamente a três tarefas centrais:
- Redação dos cadernos de iniciação e rituais da Ordem;
- Propagação e organização das lojas dos Élus-Cohens na França;
- Ensino e prática teúrgica, frequentemente com discípulos hospedados em sua própria casa.
Doença, casamento e vida familiar
Logo após chegar a Bordeaux, Pasqually enfrentou uma doença grave que o deixou acamado por mais de um mês. Recuperado, casou-se no início de setembro de 1767 com uma jovem conhecida como Colas de Pasqually, sobrinha de um antigo major do Regimento de Foix — ligação que ampliaria sua rede de discípulos entre os militares.
Em junho de 1768, nasceu seu filho, batizado e recebido ritualmente como Grande Mestre Coën, evidenciando o caráter profundamente espiritualizado da vida doméstica do fundador.
Relacionamento com os discípulos
Durante esses anos, Pasqually recebeu em sua casa figuras que se tornariam pilares do martinismo:
- Saint-Martin, então ainda leigo, que se tornaria seu secretário em 1771;
- Willermoz, organizador e sistematizador de sua obra;
- diversos membros do Regimento de Foix, que formariam o núcleo ativo da Ordem.
Seu trabalho era tão intenso quanto disciplinado: longas cartas a Willermoz tratam de práticas teúrgicas, instruções médicas, visões espirituais, redação de rituais e conselhos administrativos. Esses documentos são hoje preciosos para a compreensão da Ordem.
O Tratado da Reintegração
A filosofia da Ordem está registrada no monumental Tratado da Reintegração dos Seres, onde Pasqually descreve:
- a criação e queda das primeiras entidades espirituais;
- a natureza do homem como ser divino decaído;
- a presença de forças angélicas e maléficas na economia cosmológica;
- a missão humana de colaborar na restauração universal;
- a ascensão iniciática até o grau máximo de Réau-Croix.
Esse texto, difundido apenas entre iniciados durante sua vida, tornou-se mais tarde a referência principal do esoterismo martinista.
Partida para Saint-Domingue e Morte (1772–1774)
Em 1772, Martinès de Pasqually deixou Bordeaux rumo a Saint-Domingue (atual Haiti) para tratar da herança de um parente. Instalado na ilha, continuou a dirigir a Ordem por correspondência, mas sua saúde declinou rapidamente, e ele faleceu em 24 de setembro de 1774, vítima de febre tropical.
Antes de morrer, designou Cagnet de Lestère como sucessor. Porém, a Ordem — já enfraquecida pela complexidade dos rituais — não resistiu muito tempo após a morte do fundador. Seu último dirigente ativo, Sébastien de Las Casas, adormeceu oficialmente a Ordem em 1780.
O Pós-Martinesismo: Willermoz, Saint-Martin e o Legado Duradouro
Mesmo com o declínio dos Élus-Cohens, dois discípulos sustentaram e transformaram a herança de Pasqually:
Jean-Baptiste Willermoz
Inseriu a doutrina da Reintegração no Rito Escocês Retificado, preservando a dimensão cristã e mística do mestre.
Louis-Claude de Saint-Martin
Abandonou a teurgia, optando por uma via interior e contemplativa. Seus escritos criaram a corrente espiritual conhecida como Martinismo.
Um século depois, admiradores de Saint-Martin e de Pasqually reorganizariam essas tradições no que hoje chamamos de Ordem Martinista.
Conclusão
A vida de Martinès de Pasqually combina rigor militar, profundidade mística e uma capacidade rara de estruturar sistemas iniciáticos complexos. Seu ensinamento não era mera especulação; era prática, operativa, comprometida com a restauração da Criação.
Se sua vida foi breve e envolta em mistérios, sua obra permanece extraordinariamente viva.
A ideia de que o homem é chamado a reencontrar sua natureza divina continua ecoando, inspirando maçons, martinistas, esoteristas e buscadores espirituais em todo o mundo.
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